Tese defendido por ruralistas determina que a demarcação de uma terra indígena só pode ocorrer se for comprovado que indígenas já habitavam o território quando a Constituição foi promulgada
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma, nesta quarta-feira (30), a análise do marco temporal de terras indígenas.
O placar está em 2 a 1 contra o estabelecimento do marco.
Caso põe em lados opostos ruralistas e povos originários e tem relevância porque vai definir se a demarcação de uma terra indígena só pode acontecer se for comprovado que os indígenas já habitavam o território em 5 de outubro de 1988 — quando a Constituição Federal atual foi promulgada.
A ação tem relatoria do ministro Edson Fachin, que se manifestou contra o marco temporal, assim como Alexandre de Moraes. Já o revisor, ministro Nunes Marques, é a favor.
Confira abaixo quais são os argumentos contra e a favor.
Argumentos contrários ao marco, segundo Fachin
- Representantes dos povos indígenas afirmam que o marco temporal ameaçaria a sobrevivência de muitas comunidades indígenas e de florestas;
- Afirmam também que traria o caos jurídico ao país e muitos conflitos em áreas já pacificadas, por provocar a revisão de reservas já demarcadas;
- Proteção constitucional aos direitos dos povos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal;
- Constituição reconheceria que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado.
- Procedimento demarcatório realizado pelo Estado não criaria as terras indígenas – mas apenas as reconheceria, já que a demarcação é um ato meramente declaratório.
Argumentos favoráveis ao marco, segundo Nunes Marques
- Sem o marco, poderia haver “expansão ilimitada” para áreas “já incorporadas ao mercado imobiliário” no país;
- Soberania e independência nacional estariam em risco sem um marco;
- Necessário considerar o marco temporal por causa da segurança jurídica nacional: “Uma teoria que defenda os limites das terras a um processo permanente de recuperação de posse em razão de um esbulho ancestral naturalmente abre espaço para conflitos de toda a ordem, sem que haja horizonte de pacificação”, diz o ministro;
- Posse tradicional não deveria ser confundida com posse imemorial;
- Constituição daria prazo de cinco anos para que a União efetuasse a demarcação das terras indígenas, o que já seria intenção constitucional de criar um marco;
- Ampliação da terra indígena de Santa Catarina requerida pela Funai é indevida por se sobrepor a uma área de proteção ambiental.
Caminho do Meio
O ministro Alexandre de Moraes votou contra a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas, mas avançou em determinados pontos para além da proposta do relator. A posição pode ser vista como uma espécie de “caminho do meio” em prol de conciliar pleitos de indígenas e de produtores rurais.
Entre as propostas do ministro, há a possibilidade de indenização prévia a fazendeiros que tenham ocupado de boa-fé territórios reconhecidos como de tradicional ocupação indígena. Diferente de como é hoje, Moraes propôs que os ocupantes sejam indenizados pelo valor da terra em si e por eventuais benfeitorias feitas no local.
O ministro também defendeu a possibilidade de haver uma “compensação” aos povos originários, para terras em que houver uma ocupação “consolidada” por não indígenas ou em que a demarcação seja contrária ao interesse público. Nesses casos, seria concedido aos indígenas um território equivalente ao de tradicional ocupação.
Entidades e organizações indígenas reconhecem a importância de Moraes ter votado para invalidar a tese do marco temporal, mas criticam as medidas propostas pelo ministro, como a indenização pela terra e a possibilidade de compensação de territórios considerados consolidados.
O que diz a constituição
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O texto é do artigo 231 da Constituição do Brasil, e não determina nenhuma data.
Com o argumento do marco temporal, a área é reivindicada pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente. O caso foi parar no STF —com o entendimento de que a decisão final deve servir para balizar todos as disputas do tipo.
Em paralelo, tramita na Câmara o projeto de lei 490, de 2007, que pretende tornar mais difícil a demarcação de terras indígenas, inclusive utilizando o argumento do marco temporal.
QUAL SERIA O IMPACTO PARA OS INDÍGENAS?
Pesquisadora na Universidade de Brasília, a antropóloga Luísa Molina afirma, por sua vez, que a tese do marco temporal “reduz o acesso ao direito originário da terra” por parte dos povos indígenas.
“Uma terra indígena não é substituível por outra área, porque é um lugar sagrado, que tem história, onde se cultiva um modo de ser de cada povo”, explica Molina. “Ela é fundamental para a existência de um povo como coletivo diferenciado. É o que faz dele um povo. Se essa terra se perder, as condições da produção da diferença são atacadas e inviabilizadas”.
A pesquisadora ressalta que, no caso, “cultura e vida estão na terra, no modo de viver na terra”. E é esse o ponto que estaria em risco.
“De certa forma e incorrendo no exagero, é possível inferir a tentativa de aniquilação desses povos, pois a nova lei permite o avanço sobre terras demarcadas com a instalação de postos militares, expansão de malha viária e exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico, por exemplo”, afirma, por sua vez, Terena. “E, considerando o exemplo da história, particularmente neste período de governo Bolsonaro, não somente os nativos estão ameaçados, mas também o ambiente que ocupam e preservam.”