As mortes da adolescente Karipuna Maria Clara Batista Vieira, após ser violentada no município do Oiapoque no Amapá e do casal de rezadores Kaiowá Nhandesy Sebastiana e Nhanderu Rufino, carbonizados no território Guatsuty, em Aral Moreira, no Mato Grosso do Sul, apontam para o aumento da violência contra povos indígenas no Brasil.
Poucos dias após a III Marcha das Mulheres Indígenas, que reuniu mais de 8 mil indígenas em Brasília e reivindicou ação do Poder Público no combate à violência de gênero sofrida pelas mulheres indígenas no Brasil, um caso de extrema brutalidade abalou a comunidade indígena e deixou claro que esse tipo de violência ainda é latente no país. A menina Maria Clara Batista, 15 anos, da etnia Karipuna, foi mais uma vítima de violência sexual, na cidade de Oiapoque, no Amapá. O crime aconteceu na quarta-feira (13), mesmo dia em que a III Marcha das Mulheres Indígenas levava suas reivindicações às ruas da capital federal, e a jovem foi internada no Hospital Estadual de Oiapoque, no mesmo dia. Maria Clara foi jogada em uma área de pântano, estuprada e afogada na lama, o que a fez contrair uma infecção pulmonar. Ela foi transferida para uma UTI em Caiena, na Guiana Francesa, mas não resistiu e morreu no domingo (17). Um pescador não indígena de 45 anos foi preso pelo crime após análise de câmeras de segurança. O homem é acusado de outro estupro, ocorrido ano passado, e também responde por furto.
“O crime que tirou a vida de Maria Clara é um reflexo de uma sociedade que ainda enfrenta problemas como a intolerância, a desigualdade de gênero e a violência contra as mulheres, especialmente as indígenas. Este ato hediondo não afeta apenas a família enlutada, mas também todas as comunidades indígenas do Oiapoque, que clamam por justiça e proteção”, afirma a Funai em nota.
Um dia depois, na segunda-feira (18), o casal de rezadores Kaiowá, Nhandesy Sebastiana, de 92 anos, e Nhanderu Rufino, de 75 anos, foram mortos e carbonizados em um incêndio criminoso no território Guasuty, em Aral Moreira, município do Mato Grosso do Sul, cidade que fica na linha de fronteira entre Brasil e Paraguai.
O perfil Kunangueatyguasu no Instagram, descritos como a maior associação de Mulheres Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul, foi um dos primeiros a dar mais informações sobre as mortes: “Ambos foram executados criminosamente, consequências de umas séries de discursos de ódio, a intolerância religiosa e o racismo religioso recorrente nos territórios Kaiowá e Guarani com o avanço desenfreado das religiões neopentecostais em nossas terras“, denuncia a publicação na rede social.
Sebastiana e Rufino eram considerados líderes religiosos e teriam recebido ameaças antes do assassinato. Segundo o que foi reportado por algumas lideranças, nas ameaças, fanáticos diziam que se o casal não parasse com as práticas da religiosidade indígena seriam “queimados vivos”.
Sebastiana era chamada de Ñande Sy pelos Guarani e Kaiowá, termo que significa “nossa mãe” em guarani. A casa onde os restos mortais foram encontrados carbonizados era utilizada como um lugar de rituais espirituais, mas os ataques partiram de fanáticos que diziam que no local se fazia “macumba” – termo muito usado para atacar religiões de origem afro.
Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas afirmou que “recebeu com pesar e indignação a notícia de um casal de anciões indígenas, da etnia Guarani Kaiowá, que foram encontrados mortos” e se comprometeu, destacando que “oficiou imediatamente a Polícia Federal de Ponta Porã para investigar o caso“.
Segundo dados do mapeamento “Corpos silenciados, vozes presentes” realizado pela Aty Guasu – Grande Assembleia dos povos Kaiowá e Guarani no MS–, entre 2019 e 2021 foram pelo menos sete casas de rezas incendiadas. Segundo organizações, há um avanço do racismo religioso contra os povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.
Violência em números
Em relatório divulgado em julho desse ano, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) faz uma análise do aumento da violência contra os povos indígenas nos últimos 2 anos (2021-2022). Segundo a entidade, em 2022, assim como nos três anos anteriores (2019, 2020, 2021), os estados que registraram o maior número de assassinatos de indígenas foram Roraima (41), Mato Grosso do Sul (38) e Amazonas (30).
O relatório aponta um aumento de 8,9% nos crimes contra a pessoa (assassinatos e ameaças de morte) em 2022, com 416 casos, em comparação com 382 casos em 2021. Já nos casos de violência contra o patrimônio (extração irregular de madeira, garimpo, caça e pesca ilegais e invasões ligadas à grilagem de terra), houve um aumento de 10,4%, com 467 casos em 2022 e 423 em 2021.
Para o CIMI, o ano de 2022 representou o fim de um ciclo governamental marcado por violações e pela intensificação da violência contra os povos indígenas no Brasil. Como nos três anos anteriores, os conflitos e a grande quantidade de invasões e danos aos territórios indígenas avançaram lado a lado com o desmonte das políticas públicas voltadas aos povos originários, como a assistência em saúde e educação, e com o desmantelamento dos órgãos responsáveis pela fiscalização e pela proteção destes territórios.
“O ano foi marcado por eventos que geraram grande comoção e tiveram repercussão nacional e internacional, como os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, mortos em junho na região da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no Amazonas, por pessoas vinculadas à rede criminosa que articula invasões ao território”, destaca o Conselho.
Clique aqui para acessar o relatório na íntegra.
Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, só em 2022, foram 1.201 ataques em razão da religião, aumento de 45% em relação aos dois anos anteriores. As religiões de matriz africana e indígena são o alvo mais frequente de intolerância religiosa.
Mapeamento realizado pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras, coletou dados de representantes de 255 terreiros de todo o país, e apontou que quase metade dos terreiros do país registrou até cinco ataques nos últimos dois anos. Das pessoas ouvidas durante a pesquisa, 78% relataram que indivíduos de suas comunidades já sofreram algum tipo de violência motivada por racismo religioso.
Medidas de proteção
Depois de anos de desmantelo institucional dos órgãos de proteção e vigilância das comunidades indígenas, o trabalho necessário para retomar a atenção para os povos originários é grande e demanda compromisso e prioridade do poder público e de toda a sociedade.
No início do ano, o presidente Lula sancionou a Lei 14.532/2023, que equipara os crimes de injúria racial e racismo, também aumentou a pena para quem praticar intolerância religiosa. Uma medida necessária, visto que segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, só em 2022, foram 1.201 ataques em razão da religião, aumento de 45% em relação a dois anos atrás. As religiões de matriz africana e indígena são o alvo mais frequente de intolerância religiosa. A lei sancionada equipara o crime de injuria racial ao crime de racismo, também protege a liberdade religiosa. Ela prevê pena de 2 a 5 anos para quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. A pena será aumentada a metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas, além de pagamento de multa. Antes, a lei previa pena de 1 a 3 anos de reclusão.
No legislativo, com destaque para a importância da representatividade dos povos indígenas no poder público, a deputada Célia Xakriabá protocolou um projeto de lei para combater a violência. O projeto foi o primeiro a ser apresentado com tradução para língua indígena (Guarani-Kaiowá e Akwen). O PL 4381/23 trata dos “procedimentos a serem adotados pelas delegacias de polícia e demais órgãos responsáveis para o atendimento de mulheres indígenas vítimas de violências, nas hipóteses de medidas protetivas de urgência previstas”.
A deputada, que também é presidente da Comissão dos Povos Originários, apresentou a proposta e denunciou “Mulheres indígenas são assassinadas enquanto falamos nesta tribuna. Queremos que esse projeto de lei seja uma resposta para as mulheres indígenas que foram silenciadas pela violência”.
Confira a íntegra do Projeto de Lei e suas traduções.
No encerramento da III Marcha das Mulheres Indígenas, as ministras Sônia Guajajara e Cida Gonçalves, dos ministérios dos Povos Indígenas e das Mulheres, assinaram um conjunto de atos para implementação de políticas públicas de proteção e fortalecimento das mulheres indígenas em seus territórios. Foi anunciada a criação de um grupo de trabalho técnico para fomentar políticas públicas para mulheres indígenas (por meio do Projeto Guardiãs) e a implementação da primeira Casa da Mulher Brasileira com enfoque no atendimento a indígenas, em Dourados, no Mato Grosso. Também foi anunciada a implementação de Casas da Mulher Indígena em cada um dos seis biomas brasileiros (Caatinga, Mata Atlântica, Cerrado, Pampa, Pantanal e Amazônia).
Mas para as lideranças indígenas é preciso mais, mais atenção e prioridade, mais políticas públicas, mais representatividade, mais escuta, mais respeito e um Estado que reconheça a existência e os direitos históricos dessas populações, para proteger a sua soberania e incentivar seu crescimento em consonância com as suas vivências e crenças tradicionais.
Edelamare Melo
Coordenadora Nacional do GT/MPT/CONAETE
“Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas”
Ministério Público do Trabalho